RASTREABILIDADE ELETRÔNICA DE COLÍRIOS MULTIDOSES COMO FATOR DE SEGURANÇA NA CADEIA MEDICAMENTOSA EM UM HOSPITAL OFTALMOLÓGICO

UM CASE DE SUCESSO EM UM HOSPITAL
OFTALMOLÓGICO EM CURITIBA/PR

1. RESUMO

O objetivo desse trabalho é apresentar a metodologia implementada em um hospital de oftalmologia no Estado no Paraná, na cidade de Curitiba, para rastreabilidade eletrônica dos colírios multidoses utilizados nos procedimentos cirúrgicos e nos exames de diagnose, impactando diretamente na qualidade e segurança do paciente. Colírios multidoses são formulações oftálmicas que contêm múltiplas doses de medicamento em um único recipiente. Eles são projetados para fornecer uma quantidade precisa de medicamento a cada aplicação, facilitando o uso e evitando a contaminação do frasco. Geralmente, esses colírios vêm em embalagens que permitem a administração controlada de cada dose, garantindo a esterilidade do medicamento e a sua eficácia ao longo do tempo. A utilização de colírios multidoses é uma realidade, especialmente nos serviços de oftalmologia, porém, o controle de rastreabilidade deste tipo de medicamentos, apresenta desafios significativos devido à necessidade de monitorar com precisão o uso e a distribuição das doses em um único recipiente. Esses desafios incluem garantir a precisão das informações sobre a fabricação, data de validade e lote de cada dose individual, além de rastrear adequadamente a entrega e a administração do medicamento aos pacientes. A implementação de sistemas de rastreamento eficazes é essencial para garantir a segurança e a eficácia do tratamento oftalmológico, minimizando o risco de erros de administração e garantindo a conformidade regulatória. Neste contexto, o hospital implementou um processo de controle e rastreabilidade eletrônica para este tipo de medicamento, permitindo rastrear integralmente todos os colírios multidoses padronizados na instituição, em todas as suas etapas, desde a aquisição até o descarte garantindo a qualidade, eficácia e segurança do paciente.

2. INTRODUÇÃO

Todos os medicamentos utilizados pelos serviços de saúde, independente da sua especialidade ou porte, necessitam de cuidados específicos e rigorosos, não apenas pelos altos custos envolvidos, mas também pelo impacto na vida das pessoas que utilizam os insumos. Um medicamento pode gerar bem-estar e cura, mas também pode gerar danos, como reações, infecções e até a morte, se não controlados eficazmente em toda a cadeia medicamentosa. A Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organizations (JCI), por exemplo, identificou os cinco processos que compõem essa cadeia: seleção e obtenção do medicamento, prescrição, preparo e dispensação, administração e monitoramento dos efeitos adversos. Em todas essas etapas, a rastreabilidade é fundamental. Em nosso país, por exemplo, é obrigatório garantir que o medicamento, lote, dosagem e profissional que administrou o medicamento no paciente seja registrado no prontuário. Pode parecer absurdo, mas a displicência e a falta de rigor no processo de gerenciamento de medicamentos ainda ocorrem em hospitais/clínicas país a fora, tanto que, frequentemente somos noticiados com casos de eventos adversos provenientes de erros relacionados ao fluxo medicamentoso, como perda da visão, reações alérgicas graves, endoftalmites, entre outros. O foco em segurança do paciente nos serviços de saúde cresceu consideravelmente em importância nos últimos anos, fato que se deve às alterações significativas que ocorreram no ambiente de saúde, influenciadas pelo progresso científico e tecnológico nas áreas clínicas, bem como pela maior disponibilidade de serviços e pela disseminação global de informações de saúde. Em 2004 a OMS (Organização Mundial de Saúde) estabeleceu a World Alliance for Patient Safety (Aliança Mundial para Segurança do Paciente), que posteriormente passou a chamar-se Patient Safety Program (Programa de Segurança do Paciente). Dentro das ações estratégicas desse programa, foram definidas uma série de metas internacionais de segurança do paciente para melhorar a qualidade dos cuidados de saúde em todo o mundo e em todos os tipos de serviços de saúde, incluindo os de oftalmologia. Dentre todas essas ações, merecem destaque as seis metas internacionais de segurança do paciente, visto a sua simplicidade para implementação e impactos efetivos na qualidade da assistência. Essas metas surgiram como resultado de uma colaboração global para eliminar ou reduzir os riscos, bem como em resposta à crescente conscientização sobre a importância da segurança do paciente e os desafios enfrentados nos serviços de saúde em maior ou menor escala, conforme as realidades epidemiológicas e culturais. Elas visam prevenir incidentes de segurança e, consequentemente, melhorar os desfechos clínicos e a experiência do paciente. Implementar de maneira prática e proativa essas metas traz uma abordagem preventiva que garante, sobremaneira, a segurança dos pacientes durante toda a jornada do atendimento. Uma dessas seis metas é a “melhoraria da segurança na prescrição, no uso e na administração de medicamentos”. Os danos relacionados aos medicamentos são responsáveis por até metade do total de danos evitáveis na assistência à saúde ao redor do mundo. Dados publicados pela OMS revelam que “134 milhões de eventos adversos ocorrem a cada ano devido ao atendimento inseguro em hospitais de países de baixa e média renda, contribuindo para 2,6 milhões de mortes anualmente; que 15% das despesas hospitalares podem ser atribuídas ao tratamento de falhas de segurança do paciente em países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Além disso, sabe-se que 4 de cada 10 pacientes sofrem algum incidente de segurança nos serviços de atenção primária e ambulatorial, onde até 80% desses danos, são evitáveis” (OMS, 2021). Neste contexto todo, analisando a realidade dos hospitais/clínicas de oftalmologia, a implementação de barreiras para a segurança medicamentosa é ainda mais desafiadora, pois, diferentemente de outras especialidades, muitas cirurgias são realizadas em um tempo extremamente curto, o que impacta diretamente nas práticas de segurança e controle de infecções, por exemplo. Quando falamos em colírios multidoses, os desafios são ainda maiores, entre eles:
• Eliminação da contaminação cruzada: devido à natureza compartilhada dos recipientes multidoses, há um risco aumentado de contaminação cruzada entre pacientes. Isso pode ocorrer se o aplicador entrar em contato com o olho do paciente ou com outras superfícies contaminadas e, em seguida, retornar ao recipiente, potencialmente transferindo micro-organismos patogênicos.
• Armazenamento inapropriado: os colírios multidoses devem ser armazenados corretamente para manter sua estabilidade e eficácia. Isso pode envolver o armazenamento em temperaturas específicas ou proteção contra a luz, dependendo da formulação do insumo.
• Gerenciamento de estoque: os hospitais/clínicas precisam gerenciar cuidadosamente o estoque de colírios multidoses para garantir que haja sempre suprimentos disponíveis. Isso pode exigir sistemas de inventário eficazes e comunicação entre os profissionais de saúde para evitar interrupções no atendimento.
• Desperdícios/custos: embora os colírios multidoses possam oferecer conveniência e reduzir o desperdício em comparação com embalagens individuais, eles podem ser mais caros inicialmente. Os hospitais/clínicas precisam avaliar cuidadosamente os custos e benefícios desses medicamentos em relação às suas necessidades e orçamento.
• Adesão aos protocolos de higiene: é essencial que os profissionais de saúde e os pacientes sigam rigorosamente às práticas de higiene ao usar colírios multidoses. Isso inclui lavar as mãos antes de manusear os medicamentos, evitar o contato direto do aplicador com superfícies não esterilizadas e descartar corretamente os frascos após o uso. Diante de todo esse cenário e desafios, tendo a sustentabilidade, qualidade e segurança como princípios e valores organizacionais, ficou evidente a necessidade da rastreabilidade dos medicamentos multidoses em nosso hospital. Frente aos desafios, procuramos formas factíveis de implementar melhorias e garantir a segurança.

3. OBJETIVOS

3.1 – Objetivo geral: 

  • Apresentar o processo de rastreabilidade eletrônica de colírios multidoses em um hospital de oftalmologia.
  • Demonstrar como a prática, proporcionou maior profissionalização, eficiência em gestão e especialmente segurança do paciente.

 

3.2 – Objetivos específicos: 

  • Oportunizar o aprendizado e reflexões sobre a importância da segurança na cadeia medicamentosa, em especial na fase de rastreabilidade dos insumos.
  • Demonstrar os facilitadores e dificultadores enfrentados na implementação do projeto.
  • Gerar benchmarking para que outros serviços de oftalmologia possam implementar a rastreabilidade de colírios multidoses.

4. MATERIAIS E MÉTODOS

Em 2020 o hospital implementou o protocolo de segurança da cadeia medicamentosa, simultaneamente com a CFRP (Comissão de Farmácia, Reprocessamento e Padronização), a qual analisou e definiu o padrão institucional de medicamentos tópicos, sendo que, apenas insumos padronizados são adquiridos pela instituição. No mesmo ano, o hospital realizou uma mudança do seu sistema de informação, migrando do IAS para o Tasy e, desde então, todo o processo de suprimentos, passou a ser informatizado, porém, a rastreabilidade dos colírios multidoses, era um desafio intransponível até 2022. No processo de gestão de suprimentos do hospital, a aquisição de insumos é realizada com conferência das Ordens de Compra que, na sequência, são confirmadas com a Nota Fiscal da mercadoria entregue. Todos os materiais/medicamentos, incluindo os colírios multidoses, são recebidos única e exclusivamente na Farmácia. Nesta fase do processo, uma inspeção de recebimento criteriosa é realizada, sendo que, apenas os insumos que atendam as conformidades dos critérios estabelecidos, tais como, quantidade, condições técnicas,
temperatura, entre outros, são aprovados e recebidos. A partir daí, os insumos passam para o processo de identificação pré estocagem, sendo que, o Sistema Tasy gera um código de identificação a partir do lote, assim o medicamento recebe uma identidade exclusiva, iniciando e garantindo a rastreabilidade dentro da instituição. Após isso, os insumos são estocados na Farmácia, seguindo padrões técnicos para garantia da qualidade e segurança, como localização, identificação e sinalização de riscos, conforme exemplificado na imagem abaixo:

Figura 1 – Estocagem de medicamentos multidoses na Farmácia, com critérios de riscos por cores

Figura 2 – Fluxo resumido do processo de suprimentos no hospital

Da Farmácia, os colírios são dispensados para o Centro Cirúrgico e Diagnose, sendo todo este processo realizado de maneira eletrônica via Sistema Tasy. Até está fase já tínhamos garantia da rastreabilidade dos colírios. Por exemplo, sabíamos que uma Fenilefrina de um lote X foi dispensada para o setor de Diagnose, mas não tínhamos rastreabilidade, deste colírio na conta do paciente, visto que, um mesmo frasco é utilizado para pacientes diferentes. Surgiu então o nosso desafio: como garantir a rastreabilidade dos colírios multidoses, por paciente?

4.1 - Etapa 1

Implantação de um protocolo de instilação de colírios:

Primeiramente analisamos e estruturamos um protocolo de instilação de colírios, personalizando estes insumos as realidades do Centro Cirúrgico e da Diagnose, visto que, cada setor possui particularidades, tais como, procedimento, tipo de anestesia, preparo e padrões de instilação. Neste protocolo também definimos a quantidade de gotas a serem instiladas em cada paciente, de acordo como procedimento cirúrgico ou exame. Abaixo é possível visualizar a estrutura desse protocolo com três exemplos, nas imagens abaixo:

Figura 3 – Parte do protocolo de instilação de colírios no Centro Cirúrgico do hospital

Figura 4 – Parte do protocolo de instilação de colírios na Diagnose do hospital

Figura 5 – Parte do protocolo de instilação de colírios no Centro Cirúrgico e na Diagnose do hospital

4.2 - Etapa 2

Rastreabilidade na instilação dos colírios:

Após a criação deste protocolo, todas as informações foram cadastradas no Sistema Tasy, pois somente assim conseguiríamos implantar a rastreabilidade eletrônica dos colírios multidoses. Com todos os dados devidamente parametrizados no sistema, previamente a instilação do colírio em um paciente, o profissional que irá realizar o exame ou preparo cirúrgico executa a prescrição no Sistema Tasy e lê o código do frasco no leitor óptico, conforme exemplificado na imagem abaixo:

Figura 6 – Controle eletrônico de instilação de colírio no hospital

Com essa ação, as informações do colírio, incluindo o número do lote e a quantidade de gotas previamente cadastradas atreladas ao protocolo de instilação, são lançadas no prontuário eletrônico do paciente, garantindo assim a rastreabilidade do medicamento até a conta-paciente, conforme exemplificados na tela abaixo:

Figura 7 – Tela da rastreabilidade dos colírios multidoses no Sistema Tasy

Figura 8 – Tela da rastreabilidade dos colírios multidoses no Sistema Tasy

Figura 9 – Tela da rastreabilidade dos colírios multidoses no Sistema Tasy

Por fim, a Farmacêutica responsável, monitora todo o processo, também de forma eletrônica no Sistema Tasy, conforme exemplificado na tela abaixo:

Figura 10 – Tela de monitoramento da rastreabilidade dos colírios multidoses no Sistema Tasy

5. DISCUSSÃO FINAL

5.1 – Pontos facilitadores na implementação:

  • Existência de um sistema informatizado robusto e parametrizável.
  • Adesão dos profissionais da Diagnose e Centro Cirúrgico ao projeto.
  • Setores com processos bem-organizados.
  • Estrutura física adequada.
  • Alinhamento do projeto ao planejamento estratégico institucional.
  • Atuação multiprofissional: Farmácia, Tecnologia da Informação, Enfermagem e Qualidade.
  • Cultura de segurança do paciente e modelo de gestão da qualidade bem implementado e fortalecido na instituição.

 

5.2 – Pontos desafiadores na implementação: 

  • Rotatividade de pessoal.
  • Educação continuada dos profissionais.
  • Monitoramento constante do protocolo de instilação de colírios, confirmando se o definido está sendo efetivamente e utilizado.

6. RESULTADOS

Procuramos mostrar através deste trabalho, que a rastreabilidade de colírios multidoses é de extrema importância para qualquer serviço de oftalmologia, seja pela qualidade dos processos, pela segurança do paciente e até mesmo pela sustentabilidade organizacional. Como as pessoas são parte importante desse processo, a educação contínua dos profissionais de saúde e monitoramento constante da adesão as boas práticas são fundamentais, para garantir a conformidade perene no processo. Destacamos que a implantação da rastreabilidade nos trouxe diversos benefícios, citados ao longo desse trabalho, mas não podemos deixar de destacar dois em especial:

  • Aumento da percepção de qualidade e segurança pelos pacientes e acompanhantes.
  • Possibilidade de rastreio medicamentoso em caso de suspeitas ou confirmação de Síndrome Tóxica do Segmento anterior (TASS) e endoftalmites.

Em conclusão, o controle de colírios multidoses em um hospital/clínica de oftalmologia é uma atividade crucial que demanda atenção e rigor por parte dos profissionais de saúde. Ao lidar com formulações oftalmológicas compartilhadas entre pacientes, torna-se essencial implementar medidas eficazes para prevenir contaminação cruzada, garantir a adesão a protocolos de higiene estritos e assegurar o armazenamento apropriado dos medicamentos, além é claro da correta rastreabilidade dos insumos.

Ao enfrentar os desafios inerentes é possível promover uma prestação de cuidados oftalmológicos de qualidade, otimizando os recursos disponíveis e priorizando a saúde e o bem-estar dos pacientes. Em última análise, a implementação de práticas robustas de controle de colírios multidoses reflete o compromisso contínuo do nosso hospital com a excelência clínica e a segurança do paciente.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Guimaraes, Solange Machado, et al. “Diretrizes de Praticas em Enfermagem Cirurgica e Processamento de Produtos para a Saude- SOBECC Nacional.” Revista Aletheia, vol. 53, no. 1, Jan.-June 2020, pp. 153+. Gale OneFile: Informe Académico, link.gale.com/apps/doc/A666704858/IFME?u=anon~c885af21&sid=googleScholar&xid=307110b Acesso em: 27 de fevereiro de 2024.
Farmacologia Ocular: Bases e Terapêutica Capa dura – 19 fevereiro 2016. Edição Português por Francisco Irochima Pinheiro (Autor), Acácio Alves de Souza Lima Filho (Autor).
LACERDA, Rúbia Aparecida. Controle de infecção em centro cirúrgico fatos, mitos e controvérsias. Revista SOBECC. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. Acesso em: 27 de fevereiro de 2024.
Lacerda, R. A. (2003). Controle de infecção em centro cirúrgico fatos, mitos e controvérsias. Revista SOBECC. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. NLM”
Lacerda RA. Controle de infecção em centro cirúrgico fatos, mitos e controvérsias. Revista SOBECC. 2003; 8 (3): 29[citado 2024 fev. 28.

AUTORES

Ana Paula Casini Viana Klingelfus  –  Maria Carolina Ianik Strasbach – Rodrigo Della Torres – Wanessa Alves Belo Lissa